terça-feira, 10 de setembro de 2019

Turvo


vi seu nome, José
num documento de papai dos anos 40
vi seu nome quando em voz rouca
anunciaram a Segunda Grande Guerra
vi seu nome impresso em maiúsculas
no jornal daquele dia:

JOSÉ
vi seu nome
José

eu vi seu nome 
quando nos fizeram assinar um papel
com o meu e o seu nome
e eu, que entre tantos nomes,
vim a ser, no mundo:  Maria José

cheguei a ver em pouca luz
o seu nome debaixo da terra
entre as águas dos rios

José, vi seu nome
nas flores
nos bichos extintos
no frio, e no calor
em todas as cores, José,
eu vi o seu nome

e mesmo perdendo a visão,
eu continuei a saga
de enxergar seu nome
porque o seu nome, José,
deixou de ser palavra há muito tempo,

e assim, agora como é
matéria da memória

eu vejo o seu nome
no assoalho da casa que abandonamos
no chão úmido da noite

eu vejo o seu nome
José
quando me perco nas palavras cruzadas
no labirinto de uma família

eu vi seu nome
quando olhei para as pedras
que você já doente
carregou nos bolsos da calça

vi seu nome na doença mais triste
José
a que te fez esquecer da vida
da dor e dos passarinhos que matava nas gaiolas
eu vi seu nome

e de tanto ver teu nome
José,

eu fiquei muda

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

escapu-lá


um osso alado que faz a gente dançar:
a minha avó adorava dizer
era coisa que sua mãe lhe contava
que havia no tempo de sua avó
como era isso, vó
eu perguntava
de dar na gente um desejo de dança?
uma escápula maior que a outra,
minha filha
uma escápula maior que a outra
e eu
com meu pé minha cabeça
comecei a pensar
na falta que o osso alado faz
na construção de um delírio coletivo